O canal Giudecca, um dos maiores e mais importantes de Veneza, no norte da Itália, foi palco de uma batalha naval singular na tarde de 30 de setembro de 2018. Quando um navio de cruzeiro gigantesco — com 94 mil toneladas, quase 300 metros de comprimento e mais de 2.500 passageiros a bordo — avançou pelo curso de água, não menos que 50 barcos, canoas e botes, alguns movidos a remos, aproximaram-se da embarcação turística para protestar. Com faixas, gritos, fogos de artifício, bombas de fumaça e até ovos, os manifestantes pediram o fim da circulação dos grandes navios nos arredores da cidade. E não se trata de um protesto impopular: uma parte expressiva dos moradores venezianos está farta dos impactos negativos desse tipo de turismo. Famosa pelos canais, prédios históricos e museus de arte, Veneza é um dos principais destinos turísticos do planeta. Anualmente, a cidade recebe entre 26 e 30 milhões de visitantes. Se por um lado esse movimento impulsiona negócios e atrai dinheiro, por outro o inchaço populacional traz problemas. Um, em especial, envolve os grandes navios de cruzeiros, que se tornaram alvos cada vez mais frequentes de moradores. A cada semana, entre sábado e domingo, cerca de 18 embarcações desse tipo navegam pela bacia de São Marcos, área próxima da basílica e da praça de mesmo nome, dois dos principais pontos de visitação. É comum os navios chegarem bem perto da costa, para que os passageiros possam tirar fotos e observar Veneza do alto. Essa manobra, no entanto, desloca grande quantidade de água sobre áreas construídas, o que causa danos às fundações dos antigos e delicados edifícios de Veneza. Por conta das ondas geradas por navios, palacetes e igrejas com estilo arquitetônico único estão em risco. Outros problemas são menos visíveis, mas também danosos. O tráfego de cruzeiros tão próximo da cidade é responsável pelo aumento da poluição do ar. O combustível usado pelos navios tem um alto teor de enxofre, cujos vapores liberados na atmosfera podem provocar chuva ácida, que afeta o ambiente e a saúde dos moradores, além de danificar obras de arte e construções. Há ainda a poluição eletromagnética provocada pelos radares e sonares dos navios e a poluição sonora gerada pelos seus motores. Os moradores temem também acidentes com essas grandes embarcações, que poderiam resultar em vazamento de combustível, incêndio e naufrágio nos mares venezianos. Movimento organizado Há oito anos, preocupados com os perigos da movimentação dos navios de cruzeiro, moradores de Veneza formaram um comitê chamado No Grandi Navi: Laguna Bene Comune (algo como “Não aos Grandes Navios: Lagoa Bem Comum”, em português). Por meio de manifestações, conversas com autoridades, publicações em jornais e campanhas, esses venezianos decidiram lutar para expulsar os navios de cruzeiros. Em seu site, o movimento aponta sete medidas a serem tomadas pelas autoridades. A primeira e principal delas é a proibição imediata da entrada de navios de mais de 40 mil toneladas na Lagoa de Veneza. Além disso, a organização pede a instalação de sensores para medir a qualidade do ar no Centro Histórico e nas ilhas, além do estabelecimento de uma cota diária de visitantes permitidos na cidade. Em junho de 2017, o comitê ajudou a organizar um referendo não oficial na cidade. Mesmo sem valor legal, 18.105 (dos cerca de 50 mil habitantes) saíram de suas casas para registrar sua opinião. Cerca de 98,7% foram favoráveis à retirada dos grandes navios da lagoa. As autoridades italianas dizem que uma lei já proíbe a passagem dos navios acima de 40 mil toneladas desde 2012, mas que a regra só pode ser cumprida quando uma rota alternativa for construída para os cruzeiros. Por diversas vezes, a imprensa internacional noticiou o fim do tráfego de transatlânticos em Veneza, mas a medida nunca foi de fato cumprida. Enquanto a proibição não é adotada na prática, batalhas navais de pequenas embarcações contra gigantes do mar devem continuar a movimentar as águas venezianas.